sexta-feira
 
O trekking mais bonito do mundo
Giorgia Sena Martins

Dizem que o circuito Cordillera Huayuash é o trekking mais bonito do mundo. Li isso em fontes muito variadas: internet, revistas especializadas, guias originários de muitos países. As fotos mostram realmente um lugar encantado, longe de tudo, com lagoas muito, muito azuis, grama verde, picos nevados, montanhas imponentes... Paisagem de sonho.

Fomos para o Peru com o objetivo de fazer o Circuito Huayuash de 8 dias. O circuito completo é de 12 dias, mas como não tínhamos tempo suficiente, não faríamos a volta completa à cordilheira. Só uma parte.

Num dia à noite, na ante-véspera da partida, nos reunimos com Catalino, o arriero para olhar os mapas e resolver os detalhes. O "arriero" é quem cuida das mulas que transportam a bagagem, as barracas e a comida - assim como é o responsável pelo cavalo de salvamento, para uma eventual emergência. Na mesma reunião estavam Lucho, o guia - com experiência em Huayuash - e Francis, dono do Alojamiento Soledad, que agenciou e organizou tudo. Fechamos o negócio.

Vender o circuito Huayuash é o sonho de todos os guias e agentes de viagem de Huaraz, pois é o trekking mais caro da região, devido a essa necessidade de uma enorme infra: para ir caminhar no meio do nada é preciso ter bastante segurança.

Entretanto, um dia antes de partirmos para a tão sonhada trilha, resolvemos fazer um pequeno teste: a trilha para o Lago Churup: três horas de subida íngreme a 4.500 metros de altitude... com uma trilha opcional (que nós fizemos) de 1 hora antes, também subindo por zonas rurais muito bonitas. Trilhinha essa, esclareça-se, também feita no ar rarefeito dos Andes.

Embora eu soubesse da dificuldade, achei que me fosse possível encarar uma aventura dessas. Eu fiz o Caminho de Santiago - sem dores - em 28 dias. Já fiz trilhas super difíceis como a travessia do Vale do Paty, me aventurei por cavernas sinistras, escalei, fiz rappel, tenho farta experiência em esportes de aventura... Antes de viajar pro Peru, havia feito um check up completíssimo que atestava o meu bom condicionamento cárdio-respiratório. Aparentemente, tudo ok.

No entanto, comecei a subir Churup e as forças foram me faltando. Eu dava um passo e cansava. Subia um pouquinho e parava. Começava a ser ultrapassada por pessoas que haviam começado a subir bem depois de mim. E eu não conseguia. Não tinha mesmo forças. Por mais que eu tentasse, não dava.

Lucho, o guia, me disse: "hay que poner más esfuerzo". O Migas também não acreditava que eu não estivesse conseguindo: - Isso é um bloqueio psicológico, Gix. Eu sei que tu podes.

E eu ia seguindo: esforço hercúleo para dar passos de formiguinha. Mas, mesmo assim, cansava. Como era difícil subir aquilo! E quanto mais eu subia, mas havia por subir! Nunca chegava. Eu perguntava ao Lucho: Falta muito? E ele: Umas duas horas. Duas horas, nos passos dele, andinista habituado à altitude. Nos meus passinhos, as duas horas seriam seis, eu pensava. Seis horas de tortura.

Mesmo assim, eu tentei. Tentei, tentei, tentei. Até não poder mais. Então, joguei a toalha. Estava quase morrendo. Disse ao Migas e ao Lucho: "meninos, eu não posso mais. Não consigo, não tenho forças." Se quiserem, sigam que eu espero aqui. O Migas, categórico: - De jeito nenhum vou te deixar sozinha aqui, nesse frio!

Nós paramos, sentamos numa pedra, fizemos um lanche. Quando íamos descer, Lucho outra vez: - vamos tentar, tu consegues. O Migas concordava com o Lucho: - Sim, ela consegue. Eu sei que consegue.

Então resolvi tentar outra vez. Daí foi pior. Os passos eram ainda mais lentos. Eu sentia como se pesasse três toneladas. Tudo muito difícil. O Miguel até conversava na subida! Para ele, foi extremamente fácil. Por isso, mal conseguia acreditar no meu mau estado.

Quando estávamos quase-quase-quase chegando à tal Lagoa Churup, eu desisti de vez. Era uma subida íngreme. Eu mal conseguia olhar para ela. Foi duro, mas eu tive de reconhecer os meus limites. E desistir.

O Migas está até hoje convencido de que eu gelei por medo ou algum bloqueio psicológico. "- Gix, eu vi gente muito mais velha que tu subindo!!! Eu sei que tu tem condicionamento suficiente pra subir isso, te conheço... olha os teus exames médicos. Tu podes fazer aquilo. Eu sei que 90% dos que subiram aí estão menos condicionados que tu." (disse ele, exagerando, obviamente).

De qualquer jeito, Churup foi a pá de cal sobre Huayuash. Psicológico ou não, eu não estava tendo forças para seguir em frente. Eu vi que, daquele jeito, não conseguiria fazer a cordillera: um "paso" por dia, como falam no Peru. Um "paso" quer dizer uma subidona íngreme lá no nível dos 4 ou 5 mil metros de altitude.

Lucho, o guia, ficou tristíssimo. Ele estava perdendo uma grande oportunidade de trabalho. Além disso, ele amava ir para Huayuash... E não era sempre que isso acontecia. Ficou visivelmente abalado. Voltou quieto, cabisbaixo para casa.

Eles ainda propuseram que eu fizesse a cavalo. Eu comecei a me imaginar cavalgando naqueles precipícios (sim, passa-se por trilhas que beiram precipícios... qualquer vacilo é fatal) e recusei a idéia. Eu adoro cavalgar... Mas não tenho destreza pra cavalgar nos Andes, na neve, naquelas trilhas...

Nós já havíamos pago quase todo o valor da expedição, que não era pouco. Estávamos arriscando perder tudo. Afinal, que garantia tínhamos nós? O contrato era meramente verbal. Entretanto, eu vi que mais valia perder tudo que me arriscar numa aventura que estava além das minhas condições físicas. Prudente era desistir mesmo.

Entretanto, Francis, dono do Alojamiento Soledad me devolveu o dinheiro. Cobrou uma multa de 100 dólares, porque já havia comprado a comida, deslocado as mulas para uma outra cidade (Llamac), pago as passagens de Catalino, o arriero... Então ficaram 100 dólares pela desistência. Francis foi muito correto. Ainda me perguntou se eu achava justo. Eu disse que sim, que achava.

Dixamos ali nossa palavra: voltar e fazer o Circuito Huayuash completo. Eu disse para Francis que iria treinar muito e melhorar meu coração. Ele me disse que o que eu precisava, mesmo, era "comer muita carne... para aumentar o ferro no sangue." (Não sabia ele que exatamente essas tinham sido as recomendações médicas: suplementação de ferro... Por não comer carne desde pequena, tenho níveis bastante baixos de ferro no sangue, o que me deixa mais fraca que a maioria das pessoas... Mas eu desobedeci o médico porque o ferro me dói muito o estômago)..

Na noite que chegamos de Churup, estávamos tristes por não poder seguir para Huayuash. Eliana, a linda e educada irmã do Francis, que mora na Alemanha (e passa a estação turística no Peru), também dona do Alojamiento Soledad, nos levou dois mates de coca no quarto. Foi tão doce e amável, que me tocou fundo o coração. Agradeci muito e me segurei para não chorar. Aquele chá de coca pareceu tazido pela mãe da gente, cheio de amor.

No dia seguinte, quando partimos para Lima, o Miguel estava bastante triste. Ele disse: -Estou triste, Gix... Eu imaginei, claro, que era por não poder seguir na expedição para a "cordilheira mais bonita do mundo." Mas, antes que eu dissesse qualquer coisa, ele completou:

- Estou triste por deixar o Alojamiento Soledad.

Talvez, o mais bonito do mundo não seja mesmo a Cordillera Huayuash, mas o coração das pessoas.